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Por cristian.gomez
21-02-2024
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Extraido do :The INTERCEPT, 21 de fevereiro de 2024
Por Paulo Victor Ribeiro
Cláudio Monteiro, de 62 anos, estava em seu apartamento em São Paulo quando foi amarrado a uma maca de contenção por três homens. Era 14 de janeiro de 2023. Começava ali uma rotina de abusos, violências físicas e morais, tortura e cárcere privado que duraria 11 semanas, em duas comunidades terapêuticas evangélicas diferentes.
Depois de amarrado, foi levado em uma ambulância particular até São Lourenço da Serra, na região metropolitana. Cláudio foi internado compulsoriamente no centro Ohana, um espaço para tratamento de pessoas usuárias de drogas.
Sociólogo de formação e funcionário da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo há 40 anos, ele sabia que centros terapêuticos não podem fazer internações compulsórias, conforme estabelecido pela Anvisa. Tentou argumentar isso diversas vezes, mas foi alvo de chacota dos funcionários durante as cinco semanas em que lá permaneceu.
Ele também não era usuário de drogas. Tinha um quadro de depressão profunda, o que provocou uma tentativa de suicídio, em 2023. A família, assustada, resolveu interná-lo.
Depois da Ohana, Cláudio passou outras seis semanas na comunidade terapêutica Kairós Prime, um espaço irregular que virou notícia em setembro de 2023, quando um homem de 38 anos morreu com marcas de espancamento dentro do local. Seis meses antes, Claudio havia presenciado outro homicídio no mesmo local.
“Nós tínhamos até esperança de que talvez essa morte levasse ao fechamento da clínica e que a gente pudesse sair de lá, mas isso não aconteceu. A clínica continuou funcionando normalmente”, contou Claudio.
Após o Intercept Brasil ter publicado as duas primeiras reportagens da série ‘Máquina de Loucos‘, Cláudio entrou em contato com nossa reportagem.
Fizemos uma entrevista com ele em dois dias diferentes, que deram origem ao relato a seguir.
O texto tem gatilhos de violência e suicídio.
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Meu nome é Claudio Monteiro. Eu sou sociólogo e trabalho na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Tenho mestrado em infectologia e saúde pública. Tenho alguns cursos de especialização e atuo na área há quase 40 anos. Nasci e cresci em São Paulo. Tenho 62 anos.
Eu estava em um quadro de depressão bastante significativo há seis meses. Sofrendo de insônia, recebi uma prescrição de Zolpidem. O medicamento pode disparar gatilhos suicidas em quem enfrenta depressão, e eu tentei me atirar pela janela do quinto andar. Fui socorrido pela minha mãe, que é uma senhora de 85 anos. No desespero, ela pediu socorro a uma vizinha. Foi essa vizinha que indicou uma comunidade terapêutica.
Eu fui sequestrado. Literalmente sequestrado. Três enfermeiros invadiram meu quarto, me amarraram em uma maca de contenção e me transportaram por ambulância até a comunidade terapêutica Ohana, em São Lourenço da Serra, região metropolitana de São Paulo. Eu fiquei internado durante cinco semanas e fui torturado algumas vezes.
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Ter estudado o que eu estudei, trabalhar onde trabalho e estar naquele lugar me tocou de maneira direta. O primeiro questionamento que fiz quando cheguei na comunidade terapêutica foi que ninguém pode ser internado à revelia. “Internação compulsória não existe”, eu disse.
A resposta que eu recebi foi uma gargalhada na minha cara. Aí eu vi que eu estava perdido. Naquele momento eu tomei consciência de que eu era um prisioneiro e teria que contar comigo mesmo para tentar sobreviver naquele ambiente. Mesmo tendo essa experiência em saúde coletiva, eu nunca poderia supor que existissem lugares como esse. Enfim, descobri por dentro como esses lugares são. Para mim, foi um tapa na cara.
O esquema das comunidades terapêuticas é basicamente o mesmo. Não existe nenhuma terapêutica. A terapia é laborterapia – que são trabalhos forçados –, cultos evangélicos que você é obrigado a participar, seja sua religião ou não, e maus-tratos em todos os níveis. Não só violência física, mas violência moral e violência psicológica também.
No centro Ohana, eu passei maus tratos de vários tipos. Por exemplo, ser obrigado a usar latrinas entupidas. Você era obrigado a defecar de porta aberta. Ou você está passando e alguém, do nada, te dá um soco no estômago. Ameaças verbais e violência verbal constante. Você é xingado e chamado de incompetente a toda hora.
Eu sofri violência física quatro vezes. Uma vez eu apanhei com cabo de vassoura e, em outras três, tomei um sossega-leão seguido de espancamento. É horrível você tomar esse golpe. Você fica com traumatismo de traqueia durante alguns dias e não consegue falar, respirar ou comer direito.
Uma das vezes em que fui torturado, dois integrantes do Grupo de Apoio ao Paciente, o GAP, me ameaçaram de morte. Eles disseram que eu iria ser morto. Disseram que iriam jogar meu corpo em um laguinho ali perto e que minha família nunca iria saber o que aconteceu comigo.
Foram usadas exatamente essas palavras. É tão simples quanto isso: eles não vão com a sua cara e simplesmente te torturam.
A situação ficou insustentável. Em um domingo de visita, os internos começaram a relatar para os seus familiares os maus-tratos que todos sentíamos e éramos sujeitos lá.
Houve um motim. Eu fiz parte. O pai de outro interno que estava lá filmou um GAP aplicando um sossega-leão em mim. Essa cena depois passou no programa Cidade Alerta. Dois dias após o motim, a própria comunidade terapêutica Ohana providenciou a minha transferência para outro lugar – a comunidade terapêutica Kairós Prime.
Mesmo tendo essa experiência em saúde coletiva, eu nunca poderia supor que existissem lugares como esse. Enfim, descobri por dentro como esses lugares são. Para mim, foi um tapa na cara.
Eu estava no culto em uma noite e fui chamado. Meus pertences já estavam arrumados e eu entrei em uma ambulância sem saber o que aconteceria comigo. Eu imaginava que eu estava indo para casa, mas fui levado à Kairós Prime.
A manipulação de informação é uma coisa tão louca que eles disseram para mim, na ocasião, que a remoção havia sido providenciada pela minha família. Só quando eu saí de lá, conversando com a minha família, que soube que não.
Eu fui transferido para uma clínica em que ao menos dois óbitos aconteceram. Quando aconteceu o primeiro óbito, eu estava lá e conheci o rapaz que foi morto. Ele sofreu um espancamento e foi intoxicado com remédios em excesso.
Nós todos fomos reunidos no refeitório, que era o lugar onde havia as reuniões na clínica, e o dono da clínica, Ueder Santos de Melo, que está preso, fez questão de dizer que tinha sido uma fatalidade, que ele não era favorável à violência. Disse que os responsáveis já estavam presos. Ele não citou nomes e não explicou o que tinha acontecido.
Uma das práticas das clínicas é o tal do danoninho. Parte da violência são ameaças de você ser intoxicado com danoninho. É uma mistura de medicamentos psicotrópicos, principalmente de tranquilizantes, que você é obrigado a tomar.
Eu fui transferido para uma clínica em que ao menos dois óbitos aconteceram. Quando aconteceu o primeiro óbito, eu estava lá e conheci o rapaz que foi morto.
É tão forte que você pode, eventualmente, vir a óbito por essa intoxicação. O espancamento e a intoxicação do rapaz por danoninho aconteceram dentro da clínica. E ele faleceu dentro da clínica. Nós vimos a viatura do IML buscando o corpo.
A gente até teve a esperança de que talvez essa fatalidade levasse ao fechamento da clínica e que a gente pudesse sair de lá, mas isso não aconteceu. A clínica continuou funcionando normalmente.
A Kairós está sendo a bola da vez, mas o problema é muitíssimo maior do que isso. Infelizmente, há um número excessivo de clínicas e elas formam uma rede absolutamente mafiosa. Toda a base de sustentação delas se dá através da violência, dos trabalhos e da religiosidade forçados. Você não tem assistência médica, você não tem assistência psiquiátrica, você não tem assistência psicológica. E, se tem, é sempre no sentido de estar cerceando o seu direito de conversar com sua família, cerceando o seu direito de poder questionar o que está acontecendo. Por coisas mínimas, você acaba sofrendo algum tipo de castigo.
No papel, as clínicas não têm nenhuma relação uma com a outra. Ainda assim, todo o cotidiano é igual, a programação é a mesma. Existe uma cultura que permeia todas essas clínicas. E eu realmente não sei como vai sendo passado de uma para a outra. Os nomes são os mesmos. Os jargões que se usa são os mesmos da segurança pública. Muito jargão de cadeia. É um ambiente muito próximo ao presidiário.
Eles usam os próprios internos como monitores, como faxineiros e o que mais precisar. De manhã, há uma relação de tarefas e você é destacado para alguma função específica. No caso da Kairós Prime, eu era faxineiro.
Todos os dias você acorda, toma café-da-manhã, participa de um culto evangélico e faz laborterapia durante duas, três ou quantas horas forem necessárias para o serviço ser feito. Tem de tudo: jardinagem, destacamento da cozinha e, principalmente, faxina. Isso é chamado de laborterapia – aliás, as duas clínicas eram exatamente iguais nisso também. É assim que fica escrito no quadro de avisos, mas o nome correto é trabalho forçado.
Toda a metodologia é pautada nos 12 passos dos Narcóticos Anônimos. Existe até uma estética igual. Toda clínica que você vai tem os logotipos do Alcoólicos Anônimos e do Narcóticos Anônimos, existe o momento da partilha como é feito neste tipo de tratamento. Até a programação semanal era uma cópia uma da outra. Existe uma cultura que está muito mais espalhada do que a gente pode pensar e faz com que uma clínica seja basicamente igual a outra.
Eu não era um usuário de drogas. Eu era uma pessoa depressiva, mas fui tratado como um adicto o tempo todo. Você é obrigado a participar de todo o esquema do Narcóticos Anônimos, das partilhas, que ambas as clínicas têm. O tempo todo você é tratado como usuário de drogas. E não são poucas as pessoas não-adictas que estão nesses lugares.
É claro que eu pensei em fugir. A todo instante. Toda hora você está pensando em como você poderia dar um jeito de escapar de lá. Mas você é extremamente vigiado o tempo inteiro. Eu acredito que todo mundo sonha em fugir. Na comunidade terapêutica Ohana, eu não tentei suicídio porque eu não tinha como. Não tem como você se matar. Mas havia uma ideação suicida direta, dado o grau de maus-tratos que usavam.
Isso impactou muito a minha vida. Quando saí de lá, eu fui morar sozinho, algo que eu não estava fazendo. Eu tive que remontar minha vida de outra maneira. Em três meses, eu tive a destruição de uma série de coisas que levaram anos para serem estabelecidas.
Essencialmente, o que precisa ser contado é: não confiem em comunidades terapêuticas.
Desde que saí minha vida é um inferno. Antes, eu era só um depressivo, agora eu sou um depressivo traumatizado. Por mais que eu não queira, eu lembro. Se estou quieto em casa, eu lembro. Quando vou dormir, as cenas de tudo que passei vêm na minha cabeça. A coisa é tão bem arquitetada que, quando você está lá, acaba achando que está lá por mérito, porque você merece estar lá. Eles têm essa capacidade de fazer com que você se sinta culpado por estar lá.
Essencialmente, o que precisa ser contado é: não confiem em comunidades terapêuticas. Elas não têm nada de comunidade, muito menos de terapêutica.
Eles são extremamente maquiavélicos e se valem do desespero das famílias. Comunidades terapêuticas são máquinas de loucos. É um esquema que te deixa maluco.
Se você não for, de tão massacrado, violentado e desrespeitado, você vai ficar. É um engodo. É uma arapuca. É estelionato. O jargão nas comunidades terapêuticas é o mesmo, a programação entre elas é a mesma. Parece que a forma como a coisa se estrutura e a forma como o serviço é prestado é exatamente igual, só muda de endereço. Existe alguma coisa muito mais ampla por debaixo disso. E a gente ainda não sabe identificar quais são os tentáculos dessa rede.
Entramos em contato com a comunidade terapêutica Ohana pelo e-mail e número de telefone registrados pela organização na Receita Federal. O telefone está fora do ar. E não obtivemos resposta por e-mail.
Também enviamos perguntas a Jean Braz, advogado de Ueder Santos de Melo, dono da comunidade terapêutica fechada Kairós Prime, mas ele não nos respondeu.
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